sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Verdadeiros artistas são imprescindíveis

Mané Garrincha, um dos mais ferozes e geniais individualistas da história do futebol, que se valorizava de tal maneira a ele próprio que nem queria saber quem era o adversário directo em cada jogo – chamava a todos “João”, porque os considerava a todos irrelevantes – foi submetido, como toda a selecção brasileira, a uma barreira de testes psicotécnicos antes do Mundial de 1958. E a conclusão do psicólogo João Carvalhaes foi retumbante: com o mais baixo score de toda a equipa (38 pontos em 123), o ponta das pernas tornas devia ser afastado, porque não tinha capacidades psicológicas para ser integrado num colectivo. Aliás, na base da recomendação de Carvalhaes estava a certeza de que Garrincha não tinha capacidades psicológicas para fazer rigorosamente nada na vida. E, embora a posteridade da vida do futebolista – marcada pelo alcoolismo e pela miséria – tenham acabado por sublinhar os resultados dos testes, o seleccionador Vicente Feola ignorou a recomendação e não se arrependeu: foi muito à custa de Garrincha que o Brasil ganhou os Mundiais de 1958 e 1962.
Meio século passado é aceite a inclusão de individualistas numa equipa. Aliás é quase uma regra. “Uma equipa que não tem jogadores capazes de fazer a diferença por si só nunca será uma grande equipa. Nunca vi tal coisa na história”, considera Laszlo Bölöni, antigo treinador do Sporting que lançou Quaresma e Cristiano Ronaldo na equipa principal dos “leões”. “Quando tivemos grandes selecções de Portugal? Nos anos 60, quando lá estava Eusébio. Depois quando havia Figo e Rui Costa. E agora com Ronaldo, Quaresma, Simão, Deco… Esse é, por exemplo, o problema da Alemanha: tem bons jogadores mas não tem individualidades que se destaquem. Já não tem um Beckenbauer, um Overath, um Netzer”, explica ainda o técnico romeno, que actualmente treina o Al-Jazirah, dos Emiratos Árabes Unidos. Desmonta-se assim o mito das equipas oleadas, que funcionam apenas de uma forma colectiva. E ajuda a perceber a forma de actuar de jogadores como Quaresma, que drible sempre, mesmo quando perde a bola e das bancadas chegam os assobios. “Podem continuar a assobiar que eu continuo a pegar na bola e a resolver os jogos”, desabafou o extremo portista no final do jogo com Desp. Aves, onde tirou a camisola para festejar o golo com que respondeu aos apupos que se generalizavam.
É, afinal, uma reacção humana. “O individualismo é próprio das sociedades modernas e é uma característica normal do ser humano. Todos somos individualistas. Se não fossemos não éramos autónomos”, explica Duarte Araújo, professor de psicologia do desporto na Faculdade de Motricidade Humana. “O importante aqui é percebermos que para nos mantermos teremos que cooperar”, prossegue ainda aquele especialista. E está a cooperar um jogador que quer resolver tudo sozinho, a ponto de lhe ir faltando a lucidez para perceber que está a ir longe demais? “Em muitos casos, em vez de colaboração, há competição com os colegas. E a humanidade tem evoluído sobretudo pelos saltos qualitativos que são dados pela cooperação”, sintetiza Duarte Araújo. Os excessos de individualismo devem, portanto, ser refreados, mas não erradicados. “É preciso evitar os exageros, meter a capacidade individual no colectivo. Mas isso é o trabalho dos treinadores, que lhes devem modelar o jogo, e dos dirigentes, que devem ter a capacidade de enquadrá-los no colectivo”, vinca Bölöni.
Essa modelação dos individualistas pode, contudo, transformar-se num problema de difícil resolução. Nos últimos jogos, a selecção portuguesa sofreu bastante para manter uma toada contínua de jogo por ter em campo simultaneamente Quaresma e Ronaldo, dois extremos bastante individualistas. O próprio Bölöni, no ano em que teve os dois no mesmo plantel, no Sporting de 2002/03, raramente os utilizou em conjunto: juntos, fizeram apenas um jogo inteiro (empate com o Nacional) num total de 470 dos 3060 minutos que teve esse campeonato, o correspondente a 15 por cento de utilização conjunta. “Não me lembro se utilizei muitas vezes Quaresma e Ronaldo em simultâneo, mas é preciso ver que Quaresma tinha 18 anos e Ronaldo 17”, começa por explicar-se Bölöni. “Mas actualmente tê-los aos dois na mesma equipa não é um handicap: é um argumento colossal para a selecção portuguesa. Claro que podem jogar os dois na mesma equipa. Agora, é preciso compreendê-los e levá-los a desenvolver o jogo dentro do colectivo, porque caso contrário podem levar a equipa à anarquia”, considera aquele treinador.
No mesmo sentido argumenta Duarte Araújo. “A coabitação de individualistas depende do modelo de jogo definido pelo treinador. Imagine que todos eram individualistas dentro da sua área específica de actuação, que eram excelentes sem invadir as áreas dos outros. Nesse caso seria excelente. Mas isso é utópico e não pode ser conseguido maquinalmente”, diz o professor, revelando que essa coabitação pode ser trabalhada “através do estabelecimento de objectivos, que devem ser clarificados dentro do modelo de jogo pelo treinador”. Não que Quaresma precise disso. “Ele já evoluiu muito e vai continuar a evoluir, tornando-se cada vez mais eficaz. É um tipo generoso, que quer dar tudo pelos colegas e pelo seu público. E não o vejo só a driblar, vejo-o também a fazer passes decisivos e cruzamentos de caviar”, finaliza Bölöni. Para tirar tudo a limpo, é ver o jogo de amanhã.




Mau público pode arruinar um driblador
Um jogador capaz de resolver sozinho os problemas de uma equipa é o sonho de qualquer treinador, mas para isso é preciso que ele tenha a capacidade para se blindar aos apupos que podem sempre chegar das bancadas em maus momentos. Ainda há um ano, poucos meses antes de ser vendido ao Manchester United por mais de 25 milhões de euros, Nani era frequentemente assobiado em Alvalade, por um público incapaz de compreender que se lhe cortam as asas à criatividade podem estar a destruir o futebolista.
“No momento em que um grande driblador deixa de driblar perde logo 50 por cento da sua utilidade”, considera Laszlo Bölöni, que chama ainda a atenção para outro factor: é que muitos dos dribles são feitos “para agradar ao público”. O assobio continuado, contudo, pode transformar a vontade de brilhar em medo de errar e fazer de um individualista um mero autómato, pior do que os jogadores banais a fazer passes simples e sem risco. Ou, em oposição, levá-lo a exagerar nos comportamento individualistas. “O mais normal é que se entre num ciclo vicioso, em que quanto mais o público assobia mais o jogador entra em comportamentos individualistas, tentando provar que afinal é mesmo capaz de resolver o problema”, diz Duarte Araújo.

Da trivela à pedalada com vírgulas e focas
As pernas arqueadas levaram Quaresma a desenvolver um gesto contra-natura que, anos volvidos, se tornou uma das suas principais armas: o remate e o cruzamento de trivela, feitos com a parte de fora do pé e assim chamados porque recorrem a apenas três dedos para acertar na bola. Surpreendidos pela trajectória da bola – que curva ao contrário do que devia no momento de sair do pé – os defesas e os guarda-redes perdem uma fracção de segundo fundamental.
Mas há mais no futebol actual. Como a “pedalada” de Robinho, a “foca” de Kerlon, a “vírgula” de Ronaldinho ou a “letra” que até Jardel era capaz de fazer. Robinho ganhou um campeonato brasileiro para o Santos dando uma série de “pedaladas” – passar a perna sobre a bola sem a tocar à medida que se progride – em Rogério, até que o defesa o derrubou na área. Feita em velocidade, como faz Cristiano Ronaldo, a “pedalada” pode ser letal, mas nunca será tão espectacular como a “foca” celebrizada por Kerlon num Cruzeiro-Atl. Mineiro: trata-se de levar a bola em sucessivos toques de cabeça e, no caso de Kerlon, valeu-lhe uma agressão do frustrado Coelho.
Ronaldinho tem uma série de truques e executa-os como ninguém, mas a sua especialidade é mesmo a “vírgula” ou “elástico”: leva a bola colada à parte de fora do pé e, de repente, puxa-a para o outro lado com o peito do pé, de forma que ela se mova como o desenho de uma vírgula mas com tanta rapidez que parece puxada por um elástico. Mais simples de executar é a letra, uma das fixações de Jardel: passa-se o pé que vai chutar a bola por trás da outra perna, surpreendendo o adversário pela trajectória que, tal como na trivela, também é contrária ao esperado.



Dez grandes individualistas
Tim
Elba de Pádua Lima, um interior que no futebol ficou conhecido como Tim, foi o primeiro grande driblador da história do futebol. Jogou o Mundial de 1938 pelo Brasil, quando era estrela do Fluminense e já brilhara na Copa América. Capaz de um excelente corte seco, “El Peon”, como também lhe chamavam, fazia-o bem para os dois lados, o que o tornava mais difícil de parar.

Garrincha
Fazia sempre a mesma finta: parava face ao opositor – o “João” – e, no último momento, fugia para a direita. Toda a gente sabia, mas ninguém parava este ponta, bi-campeão mundial (em 1958 e 1962) pelo Brasil, a quem chamaram o “Anjo das Pertas Tortas”, porque a sua perna esquerda era seis centímetros mais curta que a direita e ambas fugiam para esse lado.

Stanley Matthews
O “Feiticeiro do drible”, como ficou conhecido este extremo direito do Stoke City e do Blackpool, entrou na história por quatro razões: jogou na I Divisão inglesa até aos 50 anos, foi o primeiro Bola de Ouro da história (em 1956, aos 31), o primeiro jogador a ser armado cavaleiro (e o único até hoje a sê-lo quando ainda jogava) e fez do drible uma arma incontornável.

Best
O “quinto Beatle”, como lhe chamaram por causa do seu modo de vida extravagante e pelas semelhanças físicas com os ídolos da pop nos anos 60, foi descoberto pela rede de olheiros do Manchester United em Belfast. Estrela precoce pela capacidade de aceleração e de drible com os dois pés, marcou uma era no futebol inglês, mas entrou em decadência antes dos 30 anos.

Maradona
O último génio individual do futebol, carregou sozinho a Argentina ao título mundial em 1986, onde assinou golos memoráveis, depois de driblar vários adversários. Chamaram-lhe “Pibe de Oro”, mas também ele se deixou seduzir pelo lado mais negro da idolatria, embrenhando-se na droga e na criminalidade. Ainda se acha vítima de uma conspiração da FIFA para o derrubar.

Vasques
O seu futebol artístico levou a que este membro dos “Cinco Violinos” ficasse conhecido como o “Malhoa”, tal era a complexidade das jogadas que pintava nos pelados. Sobrinho de outro jogador do Sporting – Soeiro – representou o clube de Alvalade durante 13 anos, ganhando oito campeonatos nacionais. Muitos devido ao seu drible curto e à rapidez com que saía de cada jogada.

Chalana
Nascido no Barreiro, como Vasques, foi no Benfica que se destacou. Chamavam-lhe “Pequeno Genial”, devido à baixa estatura e à capacidade de drible do pé esquerdo, armas que lhe valeram seis títulos nacionais em doze anos na Luz. Pelo meio, um grande Euro-84 valeu-lhe a transferência para o Bordéus graças à qual o Benfica fechou o terceiro anel do seu velho estádio.

Futre
Descoberto pelo Sporting no Montijo, cedo rumou ao FC Porto, pelo qual foi campeão da Europa, em 1987. Foi o primeiro cidadão do Mundo saído do futebol português: o drible inventivo, a velocidade e a capacidade do pé esquerdo, inspirados em Chalana, permitiram-lhe brilhar intensamente no At. Madrid e passar também por França, Itália, Inglaterra e Japão.

Dominguez
Júnior do Benfica, foi dispensado por causa da baixa estatura, e teve de brilhar nas divisões secundárias de Inglaterra, no Birmingham, antes de regressar pela porta grande, assinando pelo Sporting. Grande driblador, chegou à selecção nacional e regressou a Inglaterra, ao Tottenham, onde foi infeliz. Antes de se retirar passou ainda pela Alemanha, pelo Qatar e pelo Brasil.

Cristiano Ronaldo
Madeirense, cresceu no Sporting, onde entrou com 11 anos. Chegou à equipa principal um ano depois de Quaresma, sendo menos artístico mas mais veloz e competitivo. Por isso mesmo agarrou com ambas as mãos a oportunidade de se transferir para o Manchester United, onde a sua capacidade de conjugar velocidade com drible lhe valeu o estatuto de primeira figura.
Puiblicado em Diário de Notícias, 25/01/2008

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