Luiz Felipe Scolari pode até ter lido passagens do clássico de Sun-Tzu, “A Arte da Guerra”, aos seus jogadores, mas é José Mourinho quem parece conhecê-lo de trás para a frente e ser capaz de escrever uma versão aplicada ao Mundo do futebol moderno. Em todos os clubes por onde passou, o técnico do Chelsea teve conflitos abertos. E encontrou sempre a maneira de, através deles, progredir, tirar proveitos, seja para o grupo, seja para ele próprio.
No momento, o que está em causa é Andryi Shevchenko, o avançado comprado pessoalmente pelo dono do Chelsea, Roman Abramovich, por mais de 45 milhões de euros e que entretanto Mourinho relegou para o banco e até para a bancada, com referências directas a claras ao trabalho que o ucraniano estará a negligenciar. Como o ucraniano é amigo do patrão, este terá negado ao técnico os pedidos de transferência feitos na corrente janela de mercado. Os mais baratos, como o empréstimo de Milan Baros, a troca de Wright-Phillips por Defoe ou a compra de Jorge Andrade, tiveram a mesma resposta dada pelo poderoso dono do Chelsea aos mais caros, como a aquisição do defesa internacional inglês de sub-21 Micah Richards – “Ele que comece mas é a tirar rendimento de Shevchenko”.
Porque terá então Mourinho optado por provocar Abranmovich, abrindo a primeira frente de conflito com Shevchenko? As razões podem ser apenas futebolísticas, mas há uma explicação táctica na dinâmica de grupos. “Um conflito interno ao grupo, se ocorrer sob a forma de rejeição a um membro que tenha adoptado um comportamento que se desvie as normas e dos valores do grupo, poderá ter como efeito uma punição social que terá como consequência o reforço da adesão dos outros membros às normas e valores do grupo”, explica José Marques, professor de Psicologia Social da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Claro que há nisto um risco. “Se o conflito se agudizar, o grande risco será a cisão do grupo”, prossegue o professor, responsável pela cadeira de Psicologia Social do Conflito.
Ora o agudizar de conflito terá sido o objectivo de Abramovich que, para ajudar, admitia apenas fazer duas coisas. Aprovava a aquisição de Tal Bem-Haim, defesa israelita com o selo de qualidade dado pelo conselheiro Pini Zahavi e, sobretudo, recomendava a substituição de um dos adjuntos de Mourinho, Steve Clarke, pelo ex-seleccionador israelita, Avram Grant, que passaria a funcionar quase como treinador pessoal de Shevchenko. Grant, que está nas boas graças de Abramovich e Zahavi, tem recusado todas as propostas e é neste momento director de futebol do Portsmouth, do russo Gaydamak. Mas como Redknapp, treinador do clube do sul de Inglaterra, não sabe que trabalho ali faz o israelita, é provável que esteja mesmo só à espera de poder mudar-se para Londres.
Abramovich sabe desde o mês passado o que Mourinho faria em caso de interferência no seu trabalho. “Ele nunca interferiria, porque se o fizesse seria por não confiar em mim. E se não confia em mim, tem dinheiro suficiente para me pagar o resto do contrato, despedir-me e trazer outro para o meu lugar”, disse o treinador em conferência de imprensa. Quando a guerra estalou, Mourinho afirmou que, desde que o clube lhe pague o remanescente do contrato – cerca de 40 milhões de euros em ordenados e prémios dos cinco anos e meio que lhe faltam – está pronto a sair no minuto seguinte. Parece claro que tanto Mourinho como Abramovich estão a tentar tirar partido do conflito.
Mas será esta atitude boa política? “Se as circunstâncias forem correctamente analisadas e se os objectivos forem os que referi, é possível atingi-los, ou pelo menos aproximar-se deles através da geração de um conflito. Mas será sempre brincar com o fogo, já que os factores em jogo são muito mutáveis e difíceis de controlar”, explica ainda José Marques, que remete o caso para “o foro ético-moral”. Para o conseguir, completa o professor, é preciso ter a base daquilo a que “em linguagem corrente, chamamos intuição”. Seja o que for, a certeza é que, por uma vez, Mourinho encontrou em Abramovich um adversário à altura.
PRINCIPAIS CONFLITOS
Com jogadores
À chegada ao FC Porto, após uma derrota no Restelo, Mourinho abriu guerra aos jogadores: “há aqui gente com quem não vou a lado nenhum”. Mais tarde, teve um atrito com Baía, afastado por desrespeitar as regras do grupo. No Benfica, tivera problemas com Maniche e Sabry – e se o primeiro se emendou, o segundo nunca recuperou da cronometragem ao tempo que levava a atar as botas. Importantes foram ainda os conflitos com adversários, como Liedson, a quem chamou “enganador”, ou Rui Jorge, cuja camisola o acusaram de rasgar entre pragas.
Com dirigentes
Após bater o Sporting, Mourinho deixou-se ficar a falar com a mulher ao telefone, em cuecas e de pés em cima da secretária, deixando Vilarinho à porta até este desistir de esperar. Diz que se arrependeu, disso e de ter dito, depois de sair, que “Vilarinho não manda nada no Benfica”. Mas o confronto valeu-lhe o entreabrir da porta do FC Porto. Ali, quando quis seguir em frente, deixou esfriar as relações com Pinto da Costa. Os resultados impediram a guerra aberta mas a falta à festa da Liga dos Campeões equivaleu a uma declaração.
Com treinadores
No caso com Manuel José, que lhe chamou “Tarzan” para negar que o futebol seja uma selva, foi mais vítima que provocador. Mas aqui cabem melhor as polémicas com Scolari, que acusava de não ir ao Dragão como acusa agora de não se deslocar a Londres, ou a guerra com Rijkaard. O verniz estalou quando Mourinho denunciou a entrada do holandês no balneário do árbitro, Frisk. As relações entre os dois nunca mais foram decentes, o acolhimento a Mourinho em Barcelona piorou, mas os Barça-Chelsea passaram a ser vividos com mais paixão.
Com adeptos
Num Benfica-FC Porto, entrou sozinho no relvado, minutos antes dos jogadores. O resultado foi uma vaia monstruosa. Aos que o acusaram de querer ser o centro das atenções, Mourinho disse que se limitou a poupar os jogadores aos apupos: “descarregaram em cima de mim e pouparam a equipa”, explicou. Aliás, a forma insolente e serena como enfrenta as recepções em Barcelona acaba por ter esse mesmo efeito. Até o conflito com os SuperDragões, motivado por ciúmes de um dos dirigentes da claque, o ajudou a sair do FC Porto.
QUEM PODE QUERÊ-LO
Real Madrid
O regresso de Fábio Capello não está a ser coroado de sucesso. A equipa não excita os adeptos, com o seu futebol utilitário, e ao contrário do que sucedeu na primeira passagem do italiano por Espanha, em 1996, não ganha. Além disso, ódio que gera em Barcelona também o torna simpático aos olhos dos “madridistas”.
Milan
Escreve-se na imprensa italiana que Andrei Shevchenko já terá aconselhado Carlo Ancelotti a Roman Abramovich. “É o homem ideal para nós”, terá dito o ponta-de-lança ucraniano acerca do homem que melhor rendimento dele tirou, quando trabalharam juntos no Milan. A troca de treinadores é um caso a pensar.
Inter Milão
O interesse já é antigo e data de 2003, quando Moratti viu o FC Porto de Mourinho arrasar a Lazio de Mancini. Acabou por ficar com o italiano, mas nunca se convenceu. E nem os títulos entretanto ganhos na secretaria (2006) e graças às penalizações dos maiores adversários (2007, a caminho) o fizeram mudar de ideias.
Pini Zahavi e o
domínio global
Pinhas (conhecido por um diminutivo, Pini ou Pina) Zahavi é quem puxa os cordelinhos no Chelsea. Com ligações de longa data a Portugal – tem um sobrinho casado com uma portuguesa e é tio-avô de Alexander Zahavi, jogador do Barcelona e internacional sub-16 por Portugal – Pini é o principal conselheiro de Abramovich. E é apontado como o cérebro de um plano de domínio global do futebol, através da Global Soccer Agency, empresa com sede em Gibraltar, e de vários fundos de investimento.
Zahavi é um ex-jornalista que em 1979, aos 34 anos, acordou para os negócios, transferindo Avi Cohen do Maccabi Tel-Aviv para o Liverpool. Estabeleceu contactos privilegiados com o clube onde jogava Souness, agora treinador que funciona como “braço armado” do agente por onde quer que passe – assim foi, por exemplo, no Benfica de Vale e Azevedo, para onde Zahavi trouxe jogadores e onde funcionou como conselheiro do presidente.
A acção de Zahavi ultrapassa em muito a representação de jogadores. Em 2003, ajudou a concluir a compra do Chelsea por Abramovich. Depois, esteve com Aleksandar Gaydamak na aquisição do Portsmouth. Zahavi tem ainda relações estreitas com o MSI, o fundo de investimento que, em 2004, tomou conta do Corinthians e onde, apesar de Kia Joorabchian ser o “testa-de-ferro”, os interesses maiores são de Badri Patarkatsishvili, dono do Dynamo Tbilisi e ex-parceiro de Abramovich na petrolífera russa Sibneft.
A rede inclui ainda o Beitar Jerusalém, do pai de Aleksandar, Arkady Gaydamak; o West Ham, onde o MSI colocou Tevez e Mascherano; ou o Boca Juniors, dominado através da HAZ, que fundou com o agente argentino Fernando Hidalgo. Através da GSA, o israelita é ainda dono de parte dos passes de alguns talentos do Benfica. E não parece que vá ficar por aqui.
Publicado em Correio da Manhã, 20/1/2007
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário