sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Pressa é inimiga de afirmação latina

Liedson descobriu o tique de Carlos Bueno e revelou-o na auto-biografia que publicou antes do Natal: o avançado uruguaio está sempre a beber chá de erva-mate. O chá chama-se “tereré” (ver caixa), tem um ritual próprio para a preparação e degustação e, acreditem ou não, a sua falta é apontada como uma das principais razões para o fracasso repetido de jogadores sul-americanos de língua espanhola no futebol português. Nos últimos 10 anos, foram 90 os futebolistas oriundos desses países a jogar na I Divisão. E sobram dedos numa mão para contar os que verdadeiramente encheram as medidas dos clubes que os foram recrutar: Acosta, Duscher, Sanchez e Lucho González. De resto, houve muito quem confirmasse credenciais, houve até quem as superasse, mas repetem-se casos de inadaptação gritante: 41 desses 90 jogadores (quase metade) não fizeram sequer uma dezena de jogos antes de serem devolvidos à procedência.
E o caso não é sequer de agora, pois já tinha atormentado valores seguros como o mexicano Negrete, o uruguaio Rodolfo Rodriguez, ambos nos anos 80. Ou, a outro nível, até o peruano Cubillas, que passou três anos no FC Porto e saiu antes do arranque para a temporada que interrompeu o jejum de títulos, na década de 70. Ou mesmo os argentinos Yazalde e Acosta, ligados a grande sucessos do Sporting, mas apenas depois de um mais ou menos longo período de adaptação. Yazalde foi Bota de Ouro europeu, com 46 golos em 29 jogos no campeonato de 1973/74, mas no primeiro ano de Sporting (71/72) fez apenas nove em 20 desafios. Acosta chegou a ser dado como dispensável e a ser caricaturado de cadeira de rodas no seguimento de uma meia época com apenas três golos para depois ser figura incontornável do Sporting que pôs termo ao jejum de vitórias no campeonato, com 22 tentos. “Eram excelentes jogadores, mas há uma série de factores que lhes geram desequilíbrios emocionais. E obrigam a uma adaptação que leva tempo. Muitas vezes, quando estão a completá-la, vão-se embora”, considera Guilherme Farinha, treinador de futebol desempregado mas com vasta experiência em clubes do Paraguai e da Costa Rica.
Se se fala de adaptação, há que falar de Erwin Sanchez. O boliviano chegou a Portugal com 21 anos, caiu de pára-quedas no Benfica de Eriksson e, como é natural, fracassou. Teve de dar passos atrás para depois caminhar em frente. Jogou no Estoril e brilhou no Boavista, que conduziu ao seu único título nacional, quando celebrava 10 anos de permanência no país, em 2001. “Por vezes, para ganharmos uma coisa, perdemos outras. Mas no cômputo geral tem mais valor esse pouco ganho”, disse então Sanchez, a propósito das passagens falhadas pelo Benfica. E revelou que, mesmo podendo, nos últimos anos de carreira não voltaria a um grande. “A dignidade conta muito e tenho orgulho em poder andar de cabeça levantada, de consciência tranquila, em qualquer parte do Mundo. Deito-me, durmo à vontade… A minha família também sente isso. E a estabilidade é fulcral”, explicou nessa altura o homem que já treinou o Boavista e é actualmente seleccionador boliviano.
Ora na melhoria de rendimento de Sanchez da Luz para o Bessa estariam as pessoas que com ele lidavam, o facto de já ter aprendido a viver em Portugal, mas também uma realidade diferente, uma cidade menor, um clube onde há menos pressão. “Quando chegam, regra-geral, os latino-americanos vêm sós, ou trazem apenas a noiva. E isso também lhes dificulta a ambientação: são confrontados com a realidade europeia, onde há mais correria, mais barulho, mais confusão, mais stresse. A vida lá é muito mais calma”, sustenta Guilherme Farinha, aconselhando mesmo os clubes que apostam nestes jogadores a recrutar um assistente social. O resto, salvo raras excepções, consegue-se no campo, mas com tempo. “Eles estão habituados a ser mais acarinhados, a ter mais calor humano à volta da equipa, até nos treinos. E têm de se habituar a uma mudança radical em termos de metodologia de treino e de sistema de jogo”, considera ainda Farinha. “Lá não se treina como cá. As pré-épocas são cheias de grandes tareias físicas. Chega a haver equipas que não introduzem sequer a bola. Depois cá começam a trabalhar os aspectos tácticos com bola desde o primeiro dia”, concretiza. “E, tacticamente, quase todos os clubes jogam um 4x4x2 antigo, com dois extremos abertos e dois pontas-de-lança”.
Há tudo isto e, claro, o “tereré”. “Tomar e sobretudo preparar o ‘tereré’ é um ritual que leva horas, em que eles conversam com sete ou oito amigos. Alguns ainda conseguem trazer a erva, mas é-lhes impossível criar o mesmo ambiente”, explica Farinha. Eis como, por um punhado de ervas, podem arriscar-se investimentos de milhões.


Mais dois a caminho de Portugal
Lucas Mareque, defesa-esquerdo argentino de 23 anos (faz 24 na semana que vem), e Alberto Rodriguez, defesa central peruano de 22 anos, são os dois novos recrutas do contingente latino-americano. O primeiro vem do River Plate para o FC Porto, o segundo é orginiário do Sp. Cristal e vai reforçar o Sp. Braga. E, quando ambos se estrearem, passarão a ser 21 os latino-americanos na Liga deste ano. A dois do máximo, atingido em 2001/02.


O que é e como se faz o “tereré”
O “tereré”é uma bebida feita com a infusão de erva-mate em água gelada. A erva deve ficar em repouso, seca, durante oito meses, sendo depois triturada e colocada dentro da “guampa”, o recipiente em que se faz e bebe o “tereré”, para ser batida. Só depois se junta a água gelada e se filtra a infusão através de uma bomba. A bebida é muito vitamínica, auxilia a digestãoe produz efeitos anti-reumático, diurético, estimulante e laxante.



ENTREVISTA
Andrés Madrid é a excepção à regra. Chegou e excedeu as expectativas

“Na Argentina
tenho saudades
de Portugal”

CM Sport – Como explica que, ao contrário de tantos sul-americanos, que chegam à Europa e falham a aclimatação, você se tenha revelado melhor jogador do que era na Argentina?
Andrés Madrid – Explica-se com o apoio que sempre tive de toda a gente em Braga, dos meus colegas, do treinador, que me deu confiança para jogar mal eu cheguei. Claro que o apoio da família também foi importante…
CM Sport – Trouxe muita gente consigo?
Andrés Madrid – Não. Quando cheguei fiquei sozinho uns 15 ou 20 dias. Só depois veio a minha mulher.
CM Sport – Teve dificuldades de adaptação ao futebol que se joga em Portugal?
Andrés Madrid – Pelo contrário. Nunca me adaptei ao tipo de futebol da Argentina. Lá pratica-se um futebol mais agressivo. Criticavam-me pela falta de agressividade.
CM Sport – E sente saudades do modo de vida sul-americano, da cultura, das tradições?
Andrés Madrid – Sinceramente, não. Tenho saudades dos meus pais, dos meus amigos... De resto aqui tenho tudo aquilo de que preciso.
CM Sport – Mas pensa regressar à Argentina?
Andrés Madrid – Ainda nestas férias tive uma conversa engraçada com a minha mulher. Sinto-me tão à vontade aqui, que quando vou de férias à Argentina tenho saudades da minha casa em Braga. Tudo depende da minha filha.
CM Sport – Que idade tem ela?
Andrés Madrid – Tem seis meses, já nasceu em Portugal. E eu até gostava que ela fizesse a escola em Portugal e se habituasse a um estilo de vida europeu.


Publicado em Correio da Manhã, 6/1/2007

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