sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Portugal abre portas ao capital

Filipe Soares Franco nem pode ser acusado de estar a fazer a coisa pela calada: no manifesto eleitoral que apresentou aos sócios e que mereceu a aprovação de 74 por centos dos votantes nas eleições de Abril passado, lá estava a “promessa” de “alienação de parte do capital social da SAD” como forma de diminuir o passivo. Agora, contudo, o presidente leonino vai mais longe. Na altura dizia que o clube não ia abdicar da posição maioritária – clube e SGPS somados têm neste momento 78 por cento do capital –, mas o “Sport” sabe que apenas o fez para não chocar logo de entrada, pois essa era já a sua ideia. O anúncio feito este mês ao “Público” – “o Sporting tem de ter a gestão, mas não precisa de ter a maioria na SAD” – serviu para testar as reacções de sócios e oposição, mas expressa com fidelidade aquela que sempre foi a vontade do presidente, desde que aceitou uma comissão de serviço como mero substituto de António Dias da Cunha.
Na base desta ideia do presidente do Sporting está a noção de que quem investe vai querer ter uma palavra a dizer na forma como o clube é gerido. Nada de estranho nem ameaçador, pois ninguém quererá meter milhões num clube de futebol para os perder com uma gestão ruinosa: se o faz é, de certeza, para ganhar. É essa a experiência que, após ondas de choque geradas no momento em que os maiores clubes ingleses começaram a ser adquiridos por multi-milionários estrangeiros, se vive neste momento em Inglaterra: o Manchester United caminha calmamente sob o domínio dos novos donos americanos, na frente do campeonato; os adeptos do Chelsea adoram Abramovich e o rol de títulos que ele trouxe para o clube com a sua lógica despesista e no Villa Park até já se entoam cânticos de apoio a Randy Lerner, o americano que comprou o clube ao velho Doug Ellis.
A questão é que – talvez com excepção de Roman Abramovich – todos os compradores de clubes ingleses entraram no negócio para ganhar dinheiro. E por isso escolheram um mercado que o proporciona, como o inglês. Oito dos 20 clubes mundiais que mais receita geraram no último ano jogam na Premier League. Na lista, elaborada pela Delloitte, aparece apenas um clube português, o Benfica, em 20º lugar. Um dado deprimente para os que entram numa Liga cujo melhor marcador, o camaronês Meyong, se transferiu do Belenenses para o modesto Levante, de Espanha, onde raramente é utilizado mas de onde ninguém consegue fazê-lo regressar, porque em Portugal os valores pagos são muito menores, ao nível da II Liga espanhola. A constatação desta realidade já levou dirigentes de SAD portuguesas, como o Belenenses, o Marítimo ou o Vitória de Setúbal, a admitir ceder o controlo maioritário a investidores que permitam concorrer com os clubes das Ligas que geram maiores receitas.
O risco da abertura do cofre a esses investidores, contudo, é maior do que parece – não por uma questão de perda de identidade ou de sujeição a uma qualquer OPA hostil, mas porque pode repetir-se o fenómeno-Farense (ver caixa). Claro que as coisas não têm necessariamente de correr mal, mas este é um fantasma com o qual os presidentes das SAD portuguesas terão de debater-se antes de verem os sócios aprovar a desblindagem do capital que, na maior parte dos casos, está mesmo nos estatutos e que, no caso das sociedades cotadas em bolsa, se reveste de uma figura como a existente no Sporting: as acções de categoria A. Estas acções, uma espécie de “golden share” até agora detida em exclusivo pelo clube, concedem direito de veto em todas as alterações verdadeiramente significativas na governação da SAD. Mas a verdade é que, mesmo sem elas, é difícil ver quem queira meter dinheiro num negócio que até ver se tem revelado ruinoso, como é o futebol em Portugal. Porque, na verdade, o problema do futebol português não está em quem detém o capital, mas na limitação do mercado, que não proporciona receitas de televisão e marketing ao nível dos maiores. E isso não muda com investidores estrangeiros.


O fim do Farense
A SAD do Farense foi pioneira em Portugal no que à passagem do capital para mãos estrangeiras diz respeito, mas o comprador, o espanhol Juan Hidalgo, dono da agência de viagens Halcon, cedo desistiu da ideia, quando percebeu que, em Portugal, as SAD não tinham substituído os clubes, como em Espanha, e que o dinheiro que se aprestava para investir na criação da SAD seria canalizado para pagar dívidas do clube, de forma a poder inscrever a equipa na Liga, e não para apetrechar a equipa para concorrer com os melhores. Confrontados com esta realidade, os espanhóis começaram por desinvestir em tempo, entregando o negócio a administradores portugueses, mas acabaram mesmo por desistir. A SAD passou então para as mãos da Ambifaro, uma empresa municipal, mas isso também não a salvou da extinção, decretada seis anos depois da criação. O Farense passou então a competir apenas na formação mas já regressou, comandando a II Divisão distrital de Faro.




Inverfutbol após o Stellar Group no Beira Mar
O caso do último defeso em Portugal foi protagonizado pelo Beira Mar. Última classificada da Liga, a equipa de Aveiro meteu-se nas mãos de um investidor espanhol, Bartolomé Cursach, um empresário da área do lazer com sede em Maiorca. Este, por intermédio da sua empresa, a Inverfutbol, forçou o despedimento do treinador Carlos Carvalhal, que o clube contratara há cerca de um mês e, com o novo técnico, o inexperiente Paço Soler, fez chegar a Aveiro uma fornada de jogadores suficiente para fazer uma equipa totalmente nova.
Apesar de o Beira Mar não ter constituído uma SAD, esta é já a segunda parceria que o clube estabelece com investidores estrangeiros: na última vez que passou pela I Liga, o Beira Mar assinou com os britânicos Stellar Group um acordo em que estes traziam um treinador – veio Mick Wadsworth – e jogadores, em cujas transferências teriam depois uma participação de 50 por cento. Os resultados foram catastróficos, pois a equipa acabou por descer de divisão. Desta vez, embora o clube tenha uma menor participação nos casos de transferências futuras – recebe apenas 20 por cento pela valorização dos passes –, o reforço da equipa foi muito mais efectivo e o Beira Mar já está a colher frutos: ganhou três e perdeu apenas um dos cinco jogos feitos desde a chegada dos espanhóis.


Magnatas estrangeiros no futebol inglês
George Gillet e Tom Hicks
O primeiro fez fortuna na comunicação, na comida, nos resorts de esqui e já era dono dos Montreal Canadiens, uma equipa de hóquei no gelo. O segundo tornou a 7Up uma marca mundial, formou a Hicks & Muse e é dono dos Texas Rangers (basebol) e dos Dallas Stars (hóquei no gelo). Juntos compraram o Liverpool por cerca de 320 milhões de euros.

Malcolm Glazer
Começou por ser dono de parques de rulotes, mas depressa diversificou os seus investimentos a casas de repouso, aos media, ao petróleo e às franchises desportivas. Já era dono dos Tampa Bay Buccanneers quando comprou 98 por cento do Manchester United, por cerca de 1.100 milhões de euros. Muitos adeptos revoltaram-se e criaram o United FC, clube que joga nas divisões inferiores.

Roman Abramovich
De todos, é o mais rico: a Forbes estima que valha 15 mil milhões de euros e coloca-o como 11º mais rico do Mundo. A fortuna fê-la como governador da Chukotka, numa relação nunca explicada com Boris Yeltsin que lhe valeu a privatização da petrolífera russa Sibneft. A subida de Putin ao poder levou-o ao “exílio” em Londres, onde comprou o Chelsea por cerca de 200 milhões de euros.

Aleksandr Gaydamak
Filho de Arcadi Gaydamak, financeiro envolvido com Jean-Christophe Mitterrand no escândalo armas-por-petróleo com Angola, Aleksandr tem nacionalidade francesa e israelita e começou comprar metade do Portsmouth a Milan Mandaric. Seis meses depois, em Julho, adquiriu o resto das acções. No primeiro dia como dono, aprovou a aquisição de Manuel Fernandes ao Benfica (e a Zahavi).

Randy Lerner
Era dono dos Cleveland Browns, uma equipa de futebol americano, quando atingiu o controlo de 90 por cento das acções do Aston Villa, pagando a diversos accionistas cerca de 140 milhões de euros. Fez fortuna na análise financeira e, como já era adepto do clube desde que estudou em Camridge, em 1983, foi acolhido entusiasticamente pelos adeptos, que detestavam Doug Ellis, o anterior dono.

Eggert Magnusson
Dirigente reputado na Europa do futebol, lidera um consórcio islandês que bateu sobre a linha o polémico Kia Joorabchian na compra do West Ham, pelo qual pagou mais de 120 milhões de euros. Magnusson, que ficou rico no negócio do pão e das bolachas, fez parte do Comité Executivo da UEFA e, embora esteja para sair em breve, ainda é presidente da Federação Islandesa.




Regimes diferentes por toda a Europa
Os clubes ingleses são, até ver, os mais procurados pelos investidores estrangeiros, em parte porque em Inglaterra o regime legal favorece este tipo de operações – quem quiser comprar só tem que mostrar garantias de ter o dinheiro e passar num inquérito de “aptidão moral” dirigido pela Premier League. O factor mais relevante é, contudo, outro: é que o mercado inglês é aquele que mais dinheiro movimenta.
Contudo, os ingleses não estão sós. Em França, os dois clubes mais populares do país podem encontrar-se em breve em mãos estrangeiras. O Paris Saint Germain, que há quinze anos era detido pelo Canal Plus, foi comprado na Primavera passada pelo banco americano Morgan Stanley, pelo fundo de investimento francês Butler Capital Partners e pelo fundo de investimento americano Colony Capital, cada um controlando 33,3% do capital. Ao todo, custou 41 milhões de euros. E o Olympique de Marselha está em processo de venda a um canadiano, de seu nome Jack Kackhar, por 115 milhões de euros. O Lyon vai entrar em bolsa brevemente, mas Jean Michel Aulas guarda para o OL-Groupe 33 por cento do capital e tem nas mãos os 22 por cento da Pathé, o que lhe dá controlo de gestão.
Em Itália, em situação de insolvência geral, todos os clubes foram transformados em sociedades desportivas em 1967. Contudo, apesar de poder ser feita, não há uma tradição de compra dos maiores: Berlusconi é dono do Milan desde 1986; a FIAT toma conta da Juventus há três gerações; Massimo Moratti reassumiu no Inter o controlo que já tinha sido do pai, Ângelo, na década de 60. Em Espanha, por fim, nem todos os clubes passaram a sociedades – só os que estavam em situação financeira difícil foram obrigados a fazê-lo. Daí que, por exemplo, Real Madrid e Barcelona nunca tenham mudado de estatuto: são clubes e pertencem aos sócios.

Publicado em Correio da Manhã, 17/2/2007

Sem comentários: