sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

A visão de Carlos Silva

Antes de morrer, Carlos Silva teve uma visão de futuro e pediu a Scolari que desse a Cristiano Ronaldo a braçadeira de capitão no jogo com o Brasil. As razões, explicou o seleccionador, prendiam-se com o ambiente hostil que se previa que o jovem extremo do Manchester United encontrasse no Emirates Stadium, a toca do Arsenal. A esse factor podíamos ainda juntar outros dois: Ronaldo era cabeça de cartaz no jogo com o Brasil e tinha feito 22 anos na véspera. Contudo, ao que disse Felipão, tudo deixará de se aplicar quando a equipa regressar ao conforto do lar, a Alvalade, para defrontar a Bélgica. E é pena, porque era uma boa ocasião para dar asas ao sonho de modernidade de que a selecção precisa para completar a renovação.
A questão que se coloca em casos como este é: que atributos deve ter o capitão de uma selecção nacional do nível da portuguesa? E eles são uma mão cheia: capacidade de liderança, estabilidade emocional, resistência a ambientes hostis, reconhecimento internacional, bem como dentro do grupo e face a dirigentes, adeptos e patrocinadores. Ora, a partir do momento em que pôs fim à lógica de função pública em que o capitão tem de ser o mais internacional dos jogadores em campo, Scolari passou a ter carta aberta para escolher quem melhor personificar estes valores. E neste momento encontra-se numa encuzilhada – sem o general Figo e os tenentes Couto e Pauleta, em quem deve apostar? Nos sargentos sérios que toda a vida viveram à sombra da liderança anterior? Ou num “jovem turco” que, inevitavelmente, agora ou daqui a dois ou três anos, será mesmo capitão de equipa e assim poderia desde já começar a ganhar rotinas de função, hábitos de liderança?
A escolha de Ronaldo pode até ser apressada – viu-se no último Mundial, quando andava demasiado absorto em problemas de coração, que o madeirense ainda era um pós-adolescente que teve de crescer à pressa e se deixava deslumbrar com facilidade pelas luzes do “glamour” social. Tudo isso parece, contudo, ter sido colocado atrás das costas por um aconselhamento eficaz. E além de já ser neste momento a imagem de marca do futebol português em todo o Mundo, o extremo do Manchester United parece ter completado com êxito o processo de construção de uma carapaça protectora contra o abuso dos adeptos rivais. No jogo com o Brasil, é certo, terá respondido aos apupos massivos com alguns excessos de individualismo. Mas a verdade é que, enquanto ele esteve em campo, Portugal não mostrou muitos outros argumentos para se aproximar da baliza de Helton.
Quando ele saiu, viram-se finalmente argumentos colectivos capazes de ganhar ao líder do “ranking” Mundial. Estaria Ronaldo, no afã de provar que estava à altura da missão que lhe foi conferida, a canibalizar a equipa com a busca de protagonismo? Para o saber, não há nada como tornar natural uma situação que, na terça-feira à noite, era excepcional. Quando for capitão de pleno direito e papel passado, Cristiano já não terá de provar que é capaz de o fazer. E Portugal sairá a ganhar.
DÚVIDAS LEGÍTIMAS
Porque sofreu Portugal no início com o Brasil?
Porque as coberturas a meio-campo não estavam a funcionar. A equipa estava muito longa, com os extremos muito à frente da linha de médios, e Petit saía muito da zona, para perseguir Kaká. Isto deixava Tiago e Deco com uma área demasiado vasta para cobrir e abria caminho a incursões sucessivas dos brasileiros na área de Ricardo.

Como é que o Estrela bloqueou o FC Porto?
Boas coberturas zonais na zona de meio-campo, com Marco Paulo e Luís Loureiro em bom plano, a anular o jogo interior do FC Porto, e uma noite isenta de erros dos dois centrais, forçados a jogar muito na área pelos sucessivos cruzamentos dos campeões. A vitória, já foi obra das substituições, geridas com mestria por Daúto Faquirá.

Como se explica o renascimento de Bueno?
Foi uma questão de encaixe. Bueno não é tão mau como parecia no 4x4x2 quase “italiano” do Sporting, que exige muito dos avançados. Mas a partir do momento em que a equipa teve mais gente na frente, tinha de sobrar alguém. Calhou-lhe a ele, o que foi decisivo nos dois primeiros golos. E os outros dois nascem destes.



PÉ DE PÁGINA
CHÁ. Em Inglaterra, está toda a gente preocupada com a tomada do poder do futebol por milionários estrangeiros. O Manchester United é de um americano, o Chelsea de um russo – e são de russos uma série de clubes de menor importância –, o Arsenal tem parcerias com “sheiks” árabes e agora foi a vez do Liverpool, o bastião que sobrava. Contudo, a única tradição ameaçada é a das conferências de imprensa com chávenas de chá na mão.

GANHAR. Para os adeptos do futebol, devia ser indiferente que o dono do clube seja um americano, um russo, um inglês ou um “chinamarroquino”. O que devia importar-lhes era ver, como aconteceu no Chelsea e está agora a suceder no Manchester United, que duas equipas que estavam a definhar, voltaram a ganhar títulos mercê das injecções de capital (caso dos londrinos) e de uma gestão profissional (em Manchester) dos novos donos.

ÉTICA. Tudo correcto, então? Não. O único problema – não dos adeptos mas das autoridades – tem a ver com a ética de tudo isto. E tem duas ramificações. Primeiro, é preciso ver se estas “take-overs” não estão a servir para lavar dinheiro ilícito. Depois, há que esclarecer muito bem as relações entre os novos donos do futebol, para evitar que, um dia mais tarde, haja um patrão todo-poderoso a dar ordens à esquerda e à direita. O resto são tretas para entreter.
Publicado em Record Dez, 10/2/2007

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