Algumas tribos índias americanas acreditavam que a fotografia era capaz de lhes roubar a alma. Pois há uma fotografia que, sem ter roubado a alma de Miguel, a mostra em toda a sua plenitude. Vestido de verde e branco, como iniciado do Sporting, o pequeno Miguel recebe um troféu das mãos de Eusébio e sorri. Sorri porque a sua equipa tinha ganho aquela taça e sorri porque à frente tinha o Rei, o símbolo máximo do Benfica que adorava. Foi o primeiro clique na carreira de Miguel.
Muito tempo passou até as desavenças que teve com o Benfica na saída para o Valência, muito porque manteve a confiança num agente que entretanto se tornou “maldito” na Luz – Paulo Barbosa – terem levado a que se sublimassem características menos próprias da personalidade de Miguel. Sim, gosta de sair à noite: aliás, na entrevista publicada aqui ao lado faz várias referências não provocadas a discotecas, como se elas fizessem tanto parte do seu “habitat” como os relvados dos estádios. Sim, gosta de cultivar uma imagem “cool”, muito própria da Zona J de Chelas como de outros guetos. Mas é essa identidade que hoje lhe permite ser um representante visível dos que lutam contra o racismo.
Claro que ter crescido em Chelas não bastou. À revolta, Miguel teve que somar a notabilidade que o jeito para jogar à bola lhe deu. Benfiquista de coração, foi seleccionado para as camadas jovens do Sporting, mas não chegou ao topo, porque era muito “franzino”. Foi o Estrela da Amadora que o acolheu e que dele fez homem, mas os primeiros tempos não diriam que ali estava um craque na forja. Jorge Jesus levou-o à equipa principal, no último ano de júnior, mas deu-lhe apenas os últimos quatro desafios da época para se mostrar. No ano seguinte, jogou mais, mas não fez um único golo, o que não atestava muito das suas qualidades como extremo esquerdo.
Na Primavera de 2000 que se deu o segundo clique na carreira de Miguel – exibiu-se em bom nível no Torneio de Toulon e isso levou-o ao Benfica de Vale e Azevedo, que por ele pagou um milhão e meio de euros, cedendo ainda em troca Cadete e Luís Carlos, a quem teria de continuar a pagar os salários. Miguel estreou-se num particular com o Barreirense, fez logo dois golos e encheu o peito de ar: “Vamos ser campeões”, sentenciou, acrescentando estar disponível para jogar “onde o treinador quiser”. E se a primeira previsão falhou rotundamente, pois o Benfica estava a entrar naquela que foi a pior época do seu historial – sexto lugar – a segunda está relacionada com o terceiro e decisivo clique na carreira de Miguel.
Em Novembro de 2002, o Benfica perdeu em casa com o Gondomar para a Taça e Jesualdo Ferreira foi despedido. Vinha aí um espanhol – Camacho – que Miguel hoje considera o treinador mais importante da sua carreira mas, enquanto ele não chegou, foi Chalana quem pegou na equipa. O jogo era em casa, contra o Braga, e Miguel apareceu como… defesa-direito. Nunca mais largou a nova posição, pela qual chegou finalmente à selecção A, três meses depois, naquele que foi o primeiro jogo de Scolari. E garantiu um pedestal para falar contra o racismo.
Publicado em Correio da Manhã, 20/1/2007
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007
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