sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Gerrard - Um anjo francês

Quando chegou à equipa principal do Liverpool, Steven Gerrard teve que passar por um ritual de iniciação. “Obrigaram-me a cantar o ‘Angels’, do Robbie Williams”, revelou depois, já uma estrela formada. “Todos os novos têm que fazer alguma coisa desse género. Se não formos bons, mandam-nos cerveja”. Gerrard não foi bom nem mau: ainda houve quem o molhasse. Afinal, fez na música o que se esperava dele em campo até ao momento em que deixou o juízo em França e deu um salto de qualidade como futebolista.
Se há um momento fundador na passagem de Gerrard para o estrelato é o dia em que tirou os quatro dentes do siso, a conselho de um médico francês. Até então, não era capaz de fazer dois jogos por semana, debatia-se com lesões frequentes que o afastavam dos grandes desafios. Gerard Houllier, o ex-seleccionador francês que por esses tempos era treinador do Liverpool, mandou-o a Phillippe Boixel, um osteopata que conhecia da selecção e que diagnosticou ao jovem médio problemas relacionados com a rapidez no crescimento. Até aos 14 anos, altura em que foi recusado em Lilleshall – a escola federativa para os futebolistas mais promissores do país – Steven Gerrard era da mesma altura que Michael Owen, seu companheiro do Liverpool, que entrou. Hoje tem mais 13 centímetros.
Ao contrário de Owen, contudo, Gerrard manteve-se fiel ao Liverpool. Mas a ligação teve os seus altos e baixos. Insignificantes, como os motivados pelas experiências a que o jovem se submeteu nos dois clubes de Manchester e no Everton, mas também importantes, como a incerteza acerca do novo contrato que se seguiu à vitória na Liga dos Campeões, em 2005. Com dois anos por cumprir, Gerrard interessava ao Chelsea e queria ganhar mais. O Liverpool fez-lhe uma oferta de que o já capitão de equipa não gostou e, a 5 de Julho, Gerrard disse publicamente que ia sair. Terramoto: os adeptos queimaram-lhe camisolas, há quem diga que um gangster das docas lhe apontou uma arma para o forçar a renovar. Algo que Gerrard desmente. Mas, três dias depois, o contrato estava renovado.
Gerrard chegara ao Liverpool com nove anos, depois de uma curta experiência no Whiston Juniors, a equipa do bairro. Ainda criança, um acidente com uma forquilha quase lhe custou um dedo do pé e o sonho de um dia ser como John Barnes, seu ídolo de meninice. A primeira desilusão da careira – a recusa em Lilleshall – não o fez desistir, mas abrandou-lhe a pressa de viver: entre os 14 e os 16 anos fez apenas 20 jogos, sinal de irregularidade que continuou a afectá-lo quando chegou à primeira equipa (em Novembro de 1998) e à selecção (em 2000). Até ao momento em que um anjo francês lhe tirou os sisos. Como é que diz a canção? “Para onde quer que vá, sei que a vida não me quebrará”. Pois foi isso mesmo.

Publicado em Correio da Manhã, 17/2/2007

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